Cena dramática — fragmento retirado da peça "Cemitério das Flores Azuis" (2022)
- Alana Marin
- 11 de jul. de 2023
- 4 min de leitura
Sala de interrogatório na delegacia. ANA está no centro do espaço sentada em uma
cadeira dobrável de metal. Há um foco de luz direto nela. O interrogador está de pé
revirando papéis. Os demais objetos usados na cena estão dispostos em um uma
pequena mesa auxiliar de metal.
INTERROGADOR: Pode confirmar seu nome?
ANA: Ana Silva Teixeira Prado
INTERROGADOR: A senhora assassinou seu marido, Ana?
ANA: É o que estão dizendo.
INTERROGADOR: Por favor, Ana, responda a pergunta.
ANA: Eu não me lembro.
INTERROGADOR: Não se lembra?
ANA: Não me lembro de ter matado meu marido.
INTERROGADOR: Mas as evidências mostram a senhora como única suspeita. Ninguém
mais entrou no quarto na noite do crime e a senhora foi encontrada com a arma
ainda em mãos com sangue da vítima, está correto?
ANA: É verdade. Mas ainda sim não me lembro de matá-lo.
INTERROGADOR: A senhora reconhece isto? (Pega um saco plástico catalogado) Sabe
me dizer o que é?
ANA: É um estilete. (Para o público) Meu estilete.
INTERROGADOR: E sabe dizer de quem é esse estilete?
ANA: Se parece muito com um dos meus, mas esse está sem o cabo.
INTERROGADOR: Sim, a empunhadura foi removida. A senhora disse que parece um
dos seus, esse estilete parece antigo, seria uma peça de família?
ANA: Sim. Eu gosto de colecionar lâminas. Meu pai me deu o estilete da própria
coleção, o mais antigo e mais bonito. Feito de prata, sempre gostei muito dele. Foi
um presente de noivado. Mas o meu estilete tem cabo.
INTERROGADOR: Compreendo. Durante as investigações foi encontrada sua coleção e
foi notada a ausência de uma lâmina. Esse estilete se encaixa perfeitamente no
lugar que a peça está faltando. Infelizmente não conseguimos localizar a
empunhadura. Agora (pega outro saco plástico catalogado) A senhora pode me
dizer se reconhece isto?
ANA: É o meu corpete. Usei no casamento.
INTERROGADOR: E esse corpete foi feito sob medida, correto?
ANA: É claro, assim como todo resto.
INTERROGADOR: Certo… a senhora parece ser bem exigente com o que veste, então
não deve ser surpresa que seu corpete tem uma coisinha incomum. (Para o público)
Essa peça tem uma pequena abertura horizontal na borda da frente dando acesso a
um espaço oco na vertical, que podia perfeitamente ser usado para esconder um
objeto fino e longo… um estilete talvez?
ANA: Esses espaços são necessários para costurar as barbatanas, é o que dá
sustento ao corpete.
INTERROGADOR: Mas não havia barbatana. Um defeito desse a senhora certamente
perceberia, não? Ainda mais no dia do seu casamento. Essa abertura foi feita após
a peça estar pronta, a barbatana foi retirada e o estilete foi escondido dentro do
corpete. A abertura na borda foi deixada de maneira proposital para que a senhora
pudesse sacar a arma e assassinar seu marido. Ana, por quanto tempo planejou
isso?
ANA: Eu não me lembro de nada disso. Em uma noite eu estava casada e na
manhã seguinte estava viúva. É o que eu sei.
INTERROGADOR: É verdade que seu marido tinha um caso?
(Pausa)
ANA: Sim.
INTERROGADOR: Com sua melhor amiga?
ANA: Sim.
INTERROGADOR: Camila de Souza Barroso, certo?
ANA: Sim.
INTERROGADOR: Então você descobriu a traição e planejou o assassinato dos dois.
ANA: Como é?!
INTERROGADOR: Camila está morta. Você sabe que está. Você a matou.
ANA: O que?! Como pode dizer uma coisa dessas? Eu não a matei. Como poderia?
A última vez que eu a vi foi na festa e eu me lembro bem dela ir embora com as
próprias pernas.
INTERROGADOR: Se lembra de tudo muito bem, mas não se lembra de matar seu
marido, nem de planejar nada. Curioso isso, não?
ANA: Eu me lembro do meu casamento. Me lembro de encomendar o vestido e o
corpete, mas não me lembro de esconder armas nele ou matar meu marido. E
certamente também não me lembro de matar Camila porque EU-NÃO-FIZ-ISSO! A
última vez que falei com ela foi quando ela me entregou o véu com o qual me casei
e a última vez em que a vi foi na festa!
INTERROGADOR: Não falou com sua melhor amiga e madrinha durante todo o
casamento?
ANA: Eu era a noiva. Tinha muitas coisas para fazer, fotos para tirar, convidados
para cumprimentar… me lembro de ver Camila apreciando o bar. Acho que ela se
empolgou um pouco, mas o namorado estava lá para cuidar dela.
(Promotor pega mais um saco plástico)
INTERROGADOR: Ana, a senhora sabe o que é isso?
ANA: Me atrevo a dizer que são frutas.
INTERROGADOR: Isso, Ana, é Atropa Belladonna, uma planta extremamente tóxica que
pode matar. Suas folhas, flores, raízes e frutos. Mortais. Camila morreu intoxicada
com ela um dia depois do seu casamento. Você sabe o que fez, Ana. Camila morreu
porque comeu seus cupcakes envenenados que estavam naquela cesta-presente
que você deu a ela por ser sua madrinha.
ANA: Eu dei uma cesta dessa para cada madrinha do meu casamento. Quantas
delas estão mortas?
INTERROGADOR: Quantas delas dormiram com o seu marido?
ANA: Como tem tanta certeza que ela não comeu de propósito?
INTERROGADOR: E por que uma moça como ela se mataria?
ANA: Culpa, talvez. Não suportou conviver com a vergonha do que fez comigo. É
possível.
INTERROGADOR: Verdade. É possível. Mas não é curioso que, entre tantas formas de
suicídio mais simples, Camila tenha escolhido se matar da mesma forma que sua
mãe morreu? Com beladona. Por que não cortar os pulsos ou beber água sanitária?
Se atirar da janela, qualquer coisa. Comer um cupcake de beladona exige
planejamento. Vamos combinar que não é uma planta que cresce na calçada. Mas
você já sabe disso, não é?
ANA: Tá bom, para! (Toda cena congela. Apenas Ana fala e se movimenta
livremente no espaço) Não me olha assim. Aquela vadia teve o que mereceu.
Quando minha mãe morreu ela me consolou uma noite inteira e logo em seguida
traçou meu noivo. Isso não se faz. Não, não, muito feio. Eu achei até meio poético,
sabe? Gosto de coisas com significado. Camila sabia o que era beladona, quase
comemos uma vez quando éramos crianças. Mamãe cultivava escondido… veneno
pode ter sido uma estratégia meio baixa, mas queria que ela aprendesse a lição.
Que sentisse como eu me senti e que soubesse que fui eu… Muito bem, voltando!
INTERROGADOR: Mas você já sabe disso não é?
Comentários