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Cena dramática — fragmento retirado da peça "Cemitério das Flores Azuis" (2022)

Sala de interrogatório na delegacia. ANA está no centro do espaço sentada em uma

cadeira dobrável de metal. Há um foco de luz direto nela. O interrogador está de pé

revirando papéis. Os demais objetos usados na cena estão dispostos em um uma

pequena mesa auxiliar de metal.


INTERROGADOR: Pode confirmar seu nome?

ANA: Ana Silva Teixeira Prado

INTERROGADOR: A senhora assassinou seu marido, Ana?

ANA: É o que estão dizendo.

INTERROGADOR: Por favor, Ana, responda a pergunta.

ANA: Eu não me lembro.

INTERROGADOR: Não se lembra?

ANA: Não me lembro de ter matado meu marido.

INTERROGADOR: Mas as evidências mostram a senhora como única suspeita. Ninguém

mais entrou no quarto na noite do crime e a senhora foi encontrada com a arma

ainda em mãos com sangue da vítima, está correto?

ANA: É verdade. Mas ainda sim não me lembro de matá-lo.

INTERROGADOR: A senhora reconhece isto? (Pega um saco plástico catalogado) Sabe

me dizer o que é?

ANA: É um estilete. (Para o público) Meu estilete.

INTERROGADOR: E sabe dizer de quem é esse estilete?

ANA: Se parece muito com um dos meus, mas esse está sem o cabo.

INTERROGADOR: Sim, a empunhadura foi removida. A senhora disse que parece um

dos seus, esse estilete parece antigo, seria uma peça de família?

ANA: Sim. Eu gosto de colecionar lâminas. Meu pai me deu o estilete da própria

coleção, o mais antigo e mais bonito. Feito de prata, sempre gostei muito dele. Foi

um presente de noivado. Mas o meu estilete tem cabo.

INTERROGADOR: Compreendo. Durante as investigações foi encontrada sua coleção e

foi notada a ausência de uma lâmina. Esse estilete se encaixa perfeitamente no

lugar que a peça está faltando. Infelizmente não conseguimos localizar a

empunhadura. Agora (pega outro saco plástico catalogado) A senhora pode me

dizer se reconhece isto?

ANA: É o meu corpete. Usei no casamento.

INTERROGADOR: E esse corpete foi feito sob medida, correto?

ANA: É claro, assim como todo resto.

INTERROGADOR: Certo… a senhora parece ser bem exigente com o que veste, então

não deve ser surpresa que seu corpete tem uma coisinha incomum. (Para o público)

Essa peça tem uma pequena abertura horizontal na borda da frente dando acesso a

um espaço oco na vertical, que podia perfeitamente ser usado para esconder um

objeto fino e longo… um estilete talvez?

ANA: Esses espaços são necessários para costurar as barbatanas, é o que dá

sustento ao corpete.

INTERROGADOR: Mas não havia barbatana. Um defeito desse a senhora certamente

perceberia, não? Ainda mais no dia do seu casamento. Essa abertura foi feita após

a peça estar pronta, a barbatana foi retirada e o estilete foi escondido dentro do

corpete. A abertura na borda foi deixada de maneira proposital para que a senhora

pudesse sacar a arma e assassinar seu marido. Ana, por quanto tempo planejou

isso?

ANA: Eu não me lembro de nada disso. Em uma noite eu estava casada e na

manhã seguinte estava viúva. É o que eu sei.

INTERROGADOR: É verdade que seu marido tinha um caso?


(Pausa)


ANA: Sim.

INTERROGADOR: Com sua melhor amiga?

ANA: Sim.

INTERROGADOR: Camila de Souza Barroso, certo?

ANA: Sim.

INTERROGADOR: Então você descobriu a traição e planejou o assassinato dos dois.

ANA: Como é?!

INTERROGADOR: Camila está morta. Você sabe que está. Você a matou.

ANA: O que?! Como pode dizer uma coisa dessas? Eu não a matei. Como poderia?

A última vez que eu a vi foi na festa e eu me lembro bem dela ir embora com as

próprias pernas.

INTERROGADOR: Se lembra de tudo muito bem, mas não se lembra de matar seu

marido, nem de planejar nada. Curioso isso, não?

ANA: Eu me lembro do meu casamento. Me lembro de encomendar o vestido e o

corpete, mas não me lembro de esconder armas nele ou matar meu marido. E

certamente também não me lembro de matar Camila porque EU-NÃO-FIZ-ISSO! A

última vez que falei com ela foi quando ela me entregou o véu com o qual me casei

e a última vez em que a vi foi na festa!

INTERROGADOR: Não falou com sua melhor amiga e madrinha durante todo o

casamento?

ANA: Eu era a noiva. Tinha muitas coisas para fazer, fotos para tirar, convidados

para cumprimentar… me lembro de ver Camila apreciando o bar. Acho que ela se

empolgou um pouco, mas o namorado estava lá para cuidar dela.


(Promotor pega mais um saco plástico)


INTERROGADOR: Ana, a senhora sabe o que é isso?

ANA: Me atrevo a dizer que são frutas.

INTERROGADOR: Isso, Ana, é Atropa Belladonna, uma planta extremamente tóxica que

pode matar. Suas folhas, flores, raízes e frutos. Mortais. Camila morreu intoxicada

com ela um dia depois do seu casamento. Você sabe o que fez, Ana. Camila morreu

porque comeu seus cupcakes envenenados que estavam naquela cesta-presente

que você deu a ela por ser sua madrinha.

ANA: Eu dei uma cesta dessa para cada madrinha do meu casamento. Quantas

delas estão mortas?

INTERROGADOR: Quantas delas dormiram com o seu marido?

ANA: Como tem tanta certeza que ela não comeu de propósito?

INTERROGADOR: E por que uma moça como ela se mataria?

ANA: Culpa, talvez. Não suportou conviver com a vergonha do que fez comigo. É

possível.

INTERROGADOR: Verdade. É possível. Mas não é curioso que, entre tantas formas de

suicídio mais simples, Camila tenha escolhido se matar da mesma forma que sua

mãe morreu? Com beladona. Por que não cortar os pulsos ou beber água sanitária?

Se atirar da janela, qualquer coisa. Comer um cupcake de beladona exige

planejamento. Vamos combinar que não é uma planta que cresce na calçada. Mas

você já sabe disso, não é?

ANA: Tá bom, para! (Toda cena congela. Apenas Ana fala e se movimenta

livremente no espaço) Não me olha assim. Aquela vadia teve o que mereceu.

Quando minha mãe morreu ela me consolou uma noite inteira e logo em seguida

traçou meu noivo. Isso não se faz. Não, não, muito feio. Eu achei até meio poético,

sabe? Gosto de coisas com significado. Camila sabia o que era beladona, quase

comemos uma vez quando éramos crianças. Mamãe cultivava escondido… veneno

pode ter sido uma estratégia meio baixa, mas queria que ela aprendesse a lição.

Que sentisse como eu me senti e que soubesse que fui eu… Muito bem, voltando!


INTERROGADOR: Mas você já sabe disso não é?

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