A representação do relacionamento dentro de Garota Exemplar
- Alana Marin
- 22 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Aviso: esse artigo irá fazer mais sentido se você já tiver assistido ao filme.
Contém spoilers*.

Pela primeira vez na vida eu assisti meu comfort movie*, Garota Exemplar, e não o achei divertido. Na verdade, acho que pela primeira vez consegui entende-lo por completo. Até consegui compreender Nick (ficar do lado dele seria demais) e eu penso que isso é um claro sinal de amadurecimento.
Esse filme de 2014 envelheceu como um bom vinho. A primeira vez em que assisti foi por volta dos meus 18 anos. Infelizmente, eu já sabia qual era o plot twist* antes de assistir, mas ainda consigo me lembrar daquele sentimento inédito de fascinação. Ter conhecimento prévio da história não diminuiu o impacto. Eu fui completamente seduzida por Amy Dunne. Em especial na cena do monólogo. Se você sabe, você sabe. Como uma jovem mulher eu me senti perfeitamente acolhida por aquele monólogo que até esqueci que a personagem era uma psicopata.
Para quem não sabe do que eu estou falando, um breve resumo:
A história começa no dia do quinto aniversário de casamento de Nick (Ben Affleck) e Amy (Rosamund Pike). Quando Nick chega em casa depois do trabalho percebe uma cena suspeita e chama a polícia. Amy que não se encontra em casa, logo é dada como desaparecida sob circunstancias mais do que estranhas. David Fincher nos entrega uma narrativa não linear, intercalando entre a história do casal e a investigação. O passado é narrado da perspectiva de Amy. Tudo começa como um conto de fadas e se desenvolve para um pesadelo. Amy nos conta em sua próprias palavras ressentidas como seu casamento foi arruinado por agressões, problemas financeiros e adultério. Não demora muito para Nick, seu marido negligente, distante e folgado se tornar o principal suspeito.
O grande e verdadeiro impacto vem no ponto de virada onde Amy aparece viva e nos presenteia com um monólogo de sete minutos. Explicando minuciosamente como forjou seu assassinato e o porquê. Parte desse monólogo ficou conhecido como "monólogo da garota legal" (cool girl monologue). E essa parte vive livre na minha mente desde então.
"A Garota Legal. Os homens adoram esse termo. É como um elogio que nos define. Ela é uma garota legal. A Garota Legal é gostosa. A Garota Legal é divertida. Garota Legal não se zanga com seu homem. Ela sorri de modo tímido e amoroso e depois oferece sua boca para o [...]"
Foi catártico. Eu nunca vi nada parecido. Mas voltando ao início, eu disse que desta vez não tinha sido divertido. Eu, pela primeira vez assisti como um suspense psicológico e até consegui construir empatia com aquele homem horroroso que é o Nick. Garota Exemplar está no meu top 3 comfort movies por dois motivos:
Eu via Amy como uma anti-heroína e eu sei que não estou sozinha nessa.
Eu detesto o Ben Affleck. Um desses casos em que você odeia uma celebridade sem muito motivo aparente. Então eu gostava de ver ele sofrendo em tela.
Sobre o item número um, há uma coisa muito magnética em toda essa raiva adormecida e acumulada... ela simplesmente estourou como uma bomba. Mas o fato que torna essa vingança tão atraente e selecionável para "uma passada de pano" é a justificava. Eu admito que é meio exagerado, uma vez que ela podia só ter pedido o divórcio, mas por favor me acompanhe.
Amy é uma mulher que passou os últimos setes anos de sua vida sendo uma pessoa para Nick gostar. E Nick por outro lado não fazia o mínimo necessário dentro da sua relação. Quando ele está desempregado e entediado, deixa tudo nas costas de Amy. E ele a culpa por ela estar insatisfeita e depois, ele a odeia; porque precisa odiar e responsabilizar alguém que não seja ele. E quando ele não gosta mais da mulher com qual se casou, ele a trai. Nick tem um caso com uma universitária mais jovem que é o que Amy representava no passado: A Garota Legal.
Amy representou quase toda sua vida. Representou a filha perfeita, depois a namorada perfeita e por fim a esposa perfeita. Fingiu. Foi compassiva e submissa. Deu a Nick as chances que ele precisava para crescer e evoluir. Desesperadamente tentava chamar a atenção dele, mas não funcionava mais. Ele não a amava mais. Seu projeto de homem dos sonhos tinha fracassado junto com seu casamento (e é aqui que eu simpatizo com Nick. Ele também fingiu uma versão melhor de si mesmo no começo, mas não teve nenhuma oportunidade de conhecer quem era sua esposa de verdade). Amy é uma mulher de sucesso que foi se apagando lentamente para ficar ao lado do seu marido. Se mudou para cidade natal dele sem conhecer ninguém e ele a deixou completamente sozinha. O dinheiro era dela. A casa era dela. O carro era dela. Até o bar que ele administrava com a irmã, pertencia a Amy. Quando ela o viu traindo foi a gota d'água.
Nick Dunne tirou meu orgulho, minha dignidade, minha esperança e o meu dinheiro. Ele foi tirando de mim até que eu passei a não existir. Isso é assassinato. Que ele receba a punição por seu crime.
Em relacionamentos é esperado que mulheres se esforcem mais que os homens. Isso é um fato. Temos que ser bonitas, ser legais e temos que ser companheiras amáveis. É esperado que sejamos bondosas com as transgressões masculinas, que cuidemos dos nossos homens desleixados e meio burros quase como um instinto maternal. Amy estava se sentindo tão cansada e humilhada por Nick que decidiu tratar suas transgressões e deslizes como crimes que mereciam uma punição real e legal. O primeiro plano de Amy era se matar e incriminar Nick. Por consequência ele seria preso e condenado a morte, porém ela pensa melhor e as coisas tomam outro rumo.
Se interpretarmos de maneira literal, Garota Exemplar é sobre uma psicopata narcisista que quer punir seu marido infiel. Se olharmos por uma perspectiva mais simbólica vamos notar umas coisinhas interessantes. No sentido literal: Amy se vinga e pune Nick. No sentindo alegórico Amy se vinga do sistema e toma o controle sobre ele. Nick representa o sistema patriarcal que obriga Amy — e outras mulheres — a performar doçura e feminilidade em tempo integral. Um sistema que nos empurra sempre para posição de suporte, coadjuvante ou adorno. É fácil entender os argumentos de Amy, é o que faz tantas pessoas ainda torcerem por ela no final. Amy Dunne é uma jogadora. Ela conhece o jogo, ela conhece as regras, ela jogou a vida inteira.

Uma das minhas cenas favoritas é quando ela está fugindo. A janela do carro está aberta, seu cabelo está voando com o vento e ela joga fora as canetas enfeitadas com glitter e plumas que ela usou para montar seu plano maquiavélico. Extremamente simbólico. Amy está deixando para trás a vida que ela odeia. As normas, a etiqueta, o roteiro da sua performance. Esse sentimento causa um frisson (sobretudo no público feminino) que nos faz pensar que talvez Nick mereça sua punição. Amy está livre e está furiosa. E essa fúria jamais faria sentindo vindo de um personagem masculino.
É um filme complexo e cheio de detalhes que eu gosto de analisar. Dessa vez decidi compartilhar as impressões que tive ao assistir. Dei um destaque especial para os sete minutos de monólogo porque é a parte mais emblemática do filme. E também é a parte que mais me impressionou da primeira vez. Gostaria de ter analisado o filme por completo, mas pensei melhor e decidi me focar em uma parte por vez.
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