O Fantasma do Bloco Central
- Alana Marin
- 11 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Ele estava com medo, mas estava decidido e isso era o que bastava. Já havia passado por tanto, ele sentia no fundo do coração que aquilo era de seu merecimento. Iria entrar naquele prédio com o pé direito e dar o melhor de si a partir daquele momento. Porém, bastou passar a catraca para a confiança vacilar. No primeiro pátio só havia jovens estranhos de cabelos coloridos, piercings, camisetas de personagens e muito xadrez. “Pelo menos estou de xadrez”. Pelo menos ele usava xadrez, mas não havia jeito de se misturar. Era uma camisa xadrez de manga curta, calça social e sapato. Para completar, uma maleta. Um velho. “Pareço um professor”. Voltou para recepção, entregou um papel amassado com os horários das aulas. Voltou para o pátio, aquele lugar parecia diferente desde que esteve ali pela última vez em 1970. As paredes poluídas com grafite, o chão pintado imitando os ladrilhos amarelos d’O Mágico de Oz. O lugar tinha ganhado uma atmosfera viva, onde gente e arte eram uma coisa só.
À primeira vista as pinturas estavam organizadas em ordem aleatória, agrediam os olhos. Mas examinando com mais atenção, os grafites em conjunto, formavam um túnel do tempo. Algumas partes mais desbotadas do que outras, dava para notar que estilos e artistas mudavam de década para década. Como um álbum de fotografias de uma família, muito, muito grande, aquilo era história contada em tempo real. De repente o lugar não era mais estranho, as escadas e corredores continuavam os mesmos e ele podia caminhar com confiança de novo. Estava em casa.
Subindo um pouco mais na viagem temporal se deparou com o próprio reflexo. No meio da escadaria do bloco central, um fantasma do passado preso em três metros de parede. Coberto por tinta acrílica pálida e descascada. E no canto superior direito, as letras mescladas no desenho, sua assinatura secreta. “‘DeLucca’. Na minha época isso era vandalismo. Não entendo porque não apagaram”. Então só aí que DeLucca entendeu: ele deu início ao movimento que está nas paredes há cinquenta anos, antes de ter que abandonar a faculdade. O filho pródigo retornava ao lar.
Finalmente sentado em sala de aula, orgulhoso do seu segredo, ficou mais relaxado entre os jovens estranhos de cabelos coloridos. Entra mais um jovem, um pouco mais velho do que os outros, o professor. Tinha metade da sua idade, o achou mais comum do que os demais, mas ainda mais estranho do que ele. Como costume de primeiro dia se apresentou aos alunos, contou uma breve história da sua jornada artística e que também havia estudado arte naquela faculdade. Informou também onde poderiam encontrar sua pintura na parede e quando se formassem cada um poderiam pintar um pedacinho da faculdade também.
Um a um, os jovens se levantaram, se apresentaram e disseram porquê estavam ali. Esperançosos, bobões, frescos. “Eu já vi esse filme. Eu era um deles”. Respirou fundo, era sua vez.
一 É estranho para mim estar fazendo isso de novo. Meu nome é Sérgio Lima DeLucca e eu estudei aqui há cinquenta anos. Eu tive que abandonar a faculdade no meu segundo ano quando minha namorada engravidou, eu tinha 21 na época. Arrumei um emprego de carteiro e me aposentei no ramo dos correios. Hoje eu tenho três filhos e sete netos, achei que já estava na hora de voltar para meu caminho. Arte é uma coisa engraçada, uma vez na nossa vida ela sempre volta. E eu acho que é isso.
一 Uau. Essa é uma história e tanto sr. Sérgio. 一 disse o professor 一 Fico feliz que tenha voltado para nós.
一 Por favor, só Ségio. Eu que estou feliz de ter voltado, esse lugar mudou bastante.
一 Sérgio DeLucca… DeLucca?! Não me diga que o senhor é O DeLucca do Bloco Central?!
Algo mudou nos olhos do professor. Ele se adiantou para apertar a mão de Sérgio, parecia uma criança maravilhada ao conhecer seu ídolo.
一 Hmm… Sim, sou eu mesmo. Fiquei surpreso quando vi que ainda estava lá depois de tanto tempo.
一 Puxa…! 一 falava ainda segurando a mão de Sérgio 一 O senhor é uma lenda por aqui. É a primeira coisa que contam aos calouros! Que nos anos 70 um artista desconhecido pintou ilegalmente um fantasma na escadaria principal, mas a reitoria ficou tão impressionada com a audácia, a técnica e o sentimento que resolveu deixar lá. Depois virou uma tradição que os alunos do último ano deixassem uma arte antes da formatura. Demoram anos para descobrir aquela sua assinatura escondida. Um gênio, um gênio… puxa… E agora você é meu aluno? Eu não posso ensinar um gênio.
一 O senhor pode soltar minha mão?
一 Ah, sim, Desculpe.
一 Eu não tinha ideia de nada disso até chegar aqui hoje. Eu não pretendia ser um gênio, foi só um ato de rebeldia na época. Mudei de cidade logo em seguida, nunca mais pisei aqui.
一 Você pode nos contar sua história? Por favor, eu adoraria ouvir.
一 Por que não? Não é uma história longa. Foi quando eu soube que teria que ir embora. Eu estava muito feliz com a chegada do meu filho, mas também estava com raiva por ter que parar de estudar e sair da cidade. As coisas eram diferentes nos anos 70. Eu não podia ser mais um moleque. Nos mudamos porque o pai da minha esposa queria ficar de olho em mim, ele que me arrumou o emprego de carteiro. No final das contas foi só isso: molecagem. Eu fiquei muito bêbado naquela noite com uns amigos e tivemos a brilhante ideia de invadir aqui. Foi então que eu resolvi que queria pintar. Roubei material de arte e fui para o bloco central, queria que todos vissem, não queria ser esquecido. Eu sentia que tinha algo de mim para dar ao mundo. Puro ego. Foi minha vingança, eu acho. Talvez por isso tenha ficado tão bom: foi tudo feito à flor da pele. Eu não pensei em ser um gênio na época. Só queria me expressar. Pensei que pintariam por cima no dia seguinte.
一 Isso é tão incrível, seu Sérgio. Sua história é incrível. Eu realmente não acredito que estou na frente do Fantasma DeLucca. É assim que a chamamos a pintura por aqui. Mas diga, por que um fantasma?
一 Bem, isso… 一 sorriu sem graça 一 Como eu disse, não queria ser esquecido, o que seria mais emblemático do que uma assombração?
一 Uau. Realmente um gênio. Vocês que estão começando agora, eis a primeira lição! Arte não existe sem história, arte não existe sem sentimento, sem humanidade. A humanidade não existe sem arte. Estou honrado de tê-lo em minha turma, embora acredito que você possa ensinar mais a mim do que ao contrário.
Sérgio DeLucca respirou aliviado, finalmente poderia terminar o que havia começado há cinquenta anos. O Fantasma DeLucca agora tinha um rosto, nome e história. Ele conseguiu, deixou sua marca. E mais do que isso, voltou para ser reconhecido por ela. Sua arte não havia “voltado para ele”, ela simplesmente nunca se foi.
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